Muitos são os exemplos de duplo-critério da comunicação social no tratamento mediático dos temas que vão marcando a agenda política. Em resumo, pode dizer-se que as nossas redacções tratam:
- tudo o que é “ de esquerda” (e não tem que o ser, o rótulo basta…) como INOCENTE até prova em contrário;
- tudo o que é “ de esquerda” (e não tem que o ser, o rótulo basta…) como INOCENTE até prova em contrário;
- tudo o que é “ de direita”, como CULPADO até prova em contrário (neste caso, mesmo que seja um governo socialista em funções, rótulos como “austeridade”, “especulação financeira”, “grande capital”, etc., remetem automaticamente responsabilidades para a direita…).
A partir destes estereótipos (herdeiros do “Sebastianismo Abrilista”) temos uma gestão mediática – manchetes de jornais e aberturas de noticiários, nomeadamente – que reforça ou retira destaque aos assuntos de acordo com o seu desenvolvimento. É assim: se “a coisa“ corre de feição para “malhar na direita”, não se fala de outra coisa!
Veja-se o caso dos swap, por ex.: ao longo das últimas semanas o jornalismo investigou, vasculhou, procurou inconsistências, denunciou declarações contraditórias, enfim, tudo foi escrutinado (no que diz respeito ao papel de Mª L. Albuquerque).
No entanto, quando os factos e as evidências revelam, afinal, que a esquerda tem “telhados de vidro”, que as responsabilidades principais do assunto em questão até são do governo socialista, rapidamente o assunto começa a perder destaque e a cair no esquecimento… em vez do apertado escrutínio e vigilância com que os políticos ou personalidades próximas de direita, são contemplados, o jornalismo adopta uma postura bem mais passiva: não questiona, não investiga, não identifica contradições, etc... Enfim, não há aquele entusiasmo...
Insere-se neste contexto, a rúbrica “Filhos e enteados da comunicação social”, onde, através de casos concretos, se identificam exemplos deste duplo-critério do (fraco) jornalismo português. Desta feita, a personalidade é Dilma Rousseff.
Ainda há dias, aquando da visita do Papa ao Brasil (jà agora, lembram-se de algum jornalista ou comentador luso referir o aproveitamento político feito pela “presidenta” dessa visita?...), num daqueles discursos típicos da “esquerda boazinha Vs direita maléfica”, dizia assim (notícia do Público) Dilma:
“Papa Francisco e Dilma Rousseff em sintonia contra as desigualdades no mundo”
“Na recepção ao Papa, a Presidente brasileira, que perdeu alguma popularidade no auge dos protestos de há umas semanas, considerou que a resolução da actual crise não deve limitar-se a medidas de austeridade e que os problemas sociais, por ela criados, não podem ser esquecidos….”
“Dilma propôs uma aliança para combater as desigualdades e a pobreza.”
Lá está a cassete. O P.T. (partido de esquerda, certo?!) governa o Brasil “vai para décadas”, mas, numa clássica manobra de sacudir a água do capote da sua própria governação (onde é que já vimos isto…), imputa-se a crise e “os problemas sociais”, às “medidas de austeridade”…
Enfim, Dilma – numa narrativa transversal à “esquerda”, diga-se -, recorre aquela lógica infantil que pretende explicar a actual crise, não como uma consequência de anos a fio de péssimas decisões económicas em contexto de globalização, da acumulação de dívidas monstruosas ou das promessas líricas de Estados Sociais que tudo asseguram. Não! Ao ouvir a "voz da esquerda" (e o jornalismo militante, seu fiel seguidor), esta crise resulta exclusivamente das políticas e dos políticos que defendem a “austeridade”. Dilma, claro está, não se encontra entre esses malévolos indivíduos, mas entre a galeria de políticos bonzinhos, os defensores da “anti-austeridade”.
Se as palavras e a narrativa são estas, vejamos agora os actos e as atitudes… através do Blasfémias e graças à “incontornável” Helena Matos, cruzei-me com uma interessante notícia (da Reuters) que dá umas pistas sobre o que representa e em que consiste afinal essa posição “anti-austeridade” que o Brasil de Dilma defende:
“Brasil cita risco de calote e nega apoio a novo auxílio do FMI à Grécia”
“Onze países da América Latina se recusaram a apoiar a decisão do Fundo Monetário Internacional nesta semana de continuar financiando a Grécia, citando riscos de não pagamento”
Ora cá está, ao contrário dos mal-intencionados defensores da “austeridade” - que ameaçam deixar de dar apoio financeiro à Grécia, caso os gregos não façam as reformas necessárias ( no sentido de tornarem-se uma nação sustentável) -, o governo de Dilma adopta uma posição completamente diferente e… ameaça cortar o auxílio financeiro à Grécia. Entenderam?
Esta notícia é tanto mais interessante quando se analisam outras afirmações do representante do Brasil (e de outros países sul americanos), junto do FMI e se constata a existência de um conflito entre os países sul-americanos e os países europeus:
“Sob comando da Alemanha, a zona do euro prometeu considerar medidas brandas para ajudar a Grécia no ano que vem… Mas o FMI alertou que a Grécia precisa reduzir sua dívida mais intensa e rapidamente, a fim de estimular a confiança dos investidores e obter um crescimento econômico anual na faixa de 3 por cento, podendo assim concluir o resgate financeiro.”
Notável! Já não bastava a narrativa dissimulada de esquerda, que se descarta de qualquer responsabilidade em relação a todos os males desta crise (eles "é só" crescimento e emprego), afinal, enquanto nos jornais, rádio e televisões, os vemos jurar fidelidade eterna à “anti-austeridade”, na retaguarda dos gabinetes - onde, note-se, as decisões são tomadas - criticam, por serem demasiado brandas, as medidas de ajustamento propostas por aqueles que publicamente são catalogados como os “apaixonados pela austeridade”!
Talvez seja só eu a ver aqui uma enorme hipocrisia… até porque não vi nenhum jornalista ou comentador a vislumbrar qualquer incoerência entre o discurso e os actos da “presidenta” Dilma.
O caro leitor viu?!