08 novembro, 2014

A última indignação contra Merkel e o Jornalismo de Intriga…


A mais recente indignação coletiva contra a Sr.ª Merkel foi, afinal, mais um caso do Jornalismo de Intriga… 

Graças à blogosfera, cheguei a este post e ao resultado da investigação que a autora se propôs fazer em relação às afirmações que a comunicação social atribuiu a Merkel:
 
"... Anteontem não se falava de outra coisa. Fomos mesmo bombardeados com as alegadas afirmações da senhora por órgãos de comunicação social que costumam tentar distanciar-se de outros, enfim, mais useiros e vezeiros nestas matérias. Houve mesmo um ministro que respondeu às alegadas afirmações da senhora. Crato, who else.
 
Nas redes sociais (Twitter e Facebook) foi uma festa. Só comentários indignados, e outros pior ainda. Eu própria comecei por embarcar na coisa.

Mas depois parei para pensar e fui atrás.

Todos citavam a Lusa e
Bloomberg. A Lusa referia a Bloomberg. Na Bloomberg, nada. Órgãos de comunicação social espanhóis? Nada. Imprensa internacional? Nada. Eu conseguia encontrar várias notícias sobre o discurso da senhora, mas referências a Portugal e Espanha? Nada.
 
Recorro ao Twitter e ao Facebook. Pergunto. Alguém sabe? Pessoas a viver na Alemanha? Nada. No Luxemburgo. Em Espanha. Em França. Ninguém conseguia encontrar nada.

E eu queria contexto. 
 
E finalmente chega-me o contexto e o enquadramento de que eu precisava, e que me devia ter sido dado pelos órgãos de comunicação social. E chegou-me através da Helena Ferro de Gouveia que deixou um comentário num post que a Helena Araújo escreveu no Facebook.
 
O que a senhora disse foi (adaptado da tradução da Helena Ferro de Gouveia):
 
“Eu peço a todos vocês para tornarem claro nos vossos discursos em escolas e perante jovens: a formação profissional é um excelente pré-requisito para levar uma vida de prosperidade. Não tem necessariamente que se ter tirado um curso superior. Isto é muito, muito importante. Faremos tudo o que estiver no nosso poder, também a OCDE, que nos fornece muitos números úteis que afirmam que não é uma “descida” social, que o filho ou a filha de um trabalhador qualificado complete uma formação como trabalhador qualificado novamente e, de seguida, se torne num bom técnico. Internacionalmente reconhece-se que não é uma “descida” e que isto não significa que o sistema de educação tenha fracassado. Temos que abandonar a ideia de que o ensino superior é o Nonplusultra para uma carreira bem sucedida. De outra forma não poderemos provar a países como Espanha e Portugal, que têm demasiados licenciados e procuram hoje vias de formação profissional, que isso é bom”.

Ora, isto é muito diferente de "Merkel diz que Portugal tem demasiados licenciados". Isto é um "temos, nós próprios, de tomar consciência disto, porque senão não temos moral para dizê-lo aos portugueses e aos espanhóis".
 
..."

Enfim, nada de novo para quem vai lendo este blog... Merkel está, ideologicamente, do "lado errado" e, como outros, é objeto de uma espécie de linchamento mediáticoQualquer um de nós pode ser alvo deste processo sujo: retirar do contexto uma frase mais polémica que, facilmente pode ser deturpada e usada numa campanha deste género.
 
Os media nunca se retratarão do tratamento parcial e manipulador que reservaram a este caso (e a outros...). Daqui para a frente - como se de verdades inquestionáveis se tratasse -, ouviremos em discussões públicas afirmações do género "A Merkel acha que temos de ser analfabetos.", "A Merkel não quer licenciados em Portugal, quer escravos!", etc... 
 
Mais uma "verdade fabricada" e uma ideia implantada. Caso idêntico, é a célebre frase / desejo atribuído a Passos Coelho que "queria que os portugueses emigrassem". Quem se der ao trabalho de ir ler o que ele disse, facilmente constatará que não foi nada disso.   


Entretanto, nos comentário do mesmo post, mas sobre outra recente polémica que fez "correr muita tinta", pude constatar mais esta pérola do nosso jornalismo de intriga. É incrível como o rigor e isenção são negligenciados de forma a gerar estas ondas de indignação que, quase diariamente, percorrem as redes sociais...

 

(texto da autoria de "Marco")
 
Já que os jornais desistiram de investigar e informar com rigor, decidi perder aqui 10 minutos a ler a notícia com atenção e a escarafunchar o site das finanças.
Então é assim: saiu hoje uma notícia que as finanças iam vender a casa de família de uma senhora que tem dívidas sobre o IUC duns carros abatidos há uma porrada de anos, e que já lhe penhoraram o salário e mais não sei o quê. Está aqui no Económico, por exemplo: http://economico.sapo.pt/…/fisco-vende-hoje-casa-de-familia…
 
(já agora, tendo em consideração a similitude entre os vários jornais, isto tem todo o aspecto de ter sido copiado de um take da Lusa ou algo do género - ou então copiaram uns pelos outros, o que também é cada vez mais normal)
1. Inventar um nome fictício para uma pessoa que é identificada em 2 minutos no site das finanças é simplesmente estúpido. Não vou divulgar o nome da senhora, porque não sou jornalista, mas é trivial e croquetes de encontrar;
2. É incrível como é que passam cinco anos e ela não se dá conta que tem IUC por pagar. Quanto mais não fosse, ao entregar o IRS, saltava logo. Mas pronto, dou de barato, porque que quem recebe o salário mínimo, na maioria das vezes, está isento de entregar a declaração de IRS. Siga;
3. A casa não foi posta à venda hoje. Em primeiro lugar, porque hoje era o último dia para entrega de propostas (as finanças não vendem, leiloam) e em segundo porque o processo até está suspenso ao abrigo do n.º 4 do Art.º 264.º do Código do Procedimento e do Processo Tributário. Tudo informações que estão no site das finanças (e que os jornais não encontraram ou não lhes interessou encontrar);
 
4. Já que falamos no último dia para entrega de propostas (que era ontem), a senhora alega que recebeu a notícia há um mês. Peta. Pura peta. A abertura do leilão foi no dia 28 de Janeiro (fonte: adivinhem? site das finanças). Há 10 meses, portanto. E é garantido que a senhora, como fiel depositária do bem a leilão, foi notificada;
5. A senhora também diz que ganha o salário mínimo e que há cinco meses que tem o salário penhorado. Uma destas duas coisas é pura mentira. As penhoras de rendimento incidem, no máximo, sobre 1/3 do mesmo que seja superior ao salário mínimo. Portanto, uma pessoa cujo único rendimento seja o salário mínimo está sujeita a uma penhora de... zero. Há três cenários: ou a senhora tem outros rendimentos (pensão de viuvez, talvez?), ou não ganha o salário mínimo, ou não tem penhora nenhuma;
6. A notícia diz ainda que a casa do sobrinho está no mesmo terreno e que vai ser vendida também. O site das finanças diz-nos que o imóvel tem 90m² e que o terreno tem 100m². A menos que a casa do sobrinho seja alguma casota de cão, algo aqui não bate certo. A realidade é que a casa do sobrinho fica do lado esquerdo da fotografia (vê-se a sombra do telhado) e tem para aí o triplo do tamanho (facilmente visível no Google Maps). E, não, não vai ser leiloada (nem vendida) em conjunto;
 
7. Já disse isto, mas volto a dizer: o leilão está suspenso, por ter sido pago 20% do valor em dívida. Claro que os jornalistas se "esqueceram" de referir o facto. Quer dizer, a senhora dá a entrevista, "coitadinha de mim que me vão vender a casa", é publicada neste pressuposto e agora deixa-me cá ir pagar 20% da dívida. Aliás, como é que, com ordenados penhorados e entregas "de 50 ou 100 euros, conforme pode", ainda não estavam 20% (380€) pagos?
Mais do que o caso da senhora, que é dramático mas com mais buracos do que um Emmental, o que está aqui em causa é a péssima qualidade do jornalismo cá do burgo. Miserável.

É isso mesmo - miserável - define bem o jornalismo que temos...
 
Com jornalismo assim, quem precisa de censura?...