Um texto de Ferreira Fernandes no DN, que, a partir de eventos similares - pela simples forma como mediaticamente os assuntos / acontecimentos são abordados e pelos termos em que a discussão pública em torno dos mesmos é contextualizada pelos media -, demonstra e nos ajuda a refletir, sobre o papel e o enorme poder que a comunicação social detém, relativamente à forma como os cidadãos percecionam a "realidade" a constroem a sua opinião.
"Em 1994, Florence, de 19 anos, e Audry, de 22, casal de anarquistas parisienses, cansaram-se de simples conversa radical. Com carabinas assaltam dois polícias para lhes roubar as pistolas. A ideia era atacar bancos, como "Bonnie and Clyde" e assim.
O assalto aos polícias corre mal, têm de fugir, entram num táxi mas o taxista choca com um carro policial. Os cabeças quentes matam dois polícias e o taxista. São perseguidos, matam outro polícia e Audry também é morto. Meia hora, cinco mortos. A foto de Florence, olhos desafiadores, fascina a opinião pública. Nasce uma lenda.
Os jornais (o Libération, jornal de causas, à cabeça) atiçam a fogueira da romântica anarquista (virão depois romances, filmes, bandas desenhadas). A heroína, calada durante o seu julgamento, eclipsa as viúvas dos polícias e do taxista, que ficarão sem resposta sobre o porquê da tragédia. Foi há 19 anos.
Esta semana, um tipo entrou no átrio do jornal Libération, deu dois tiros num fotógrafo, que ficou em coma, saiu e deu mais tiros à fachada de um banco. O jornal entrou em transe: "Nós continuaremos!", disse o diretor, como se a liberdade de imprensa estivesse em causa. Primeira linha do editorial: "Horror absoluto", como se fosse Auschwitz... Ironia: o atirador foi o cúmplice que arranjou as carabinas a Florence e Aubry, em 1994. Um pobre diabo, com as mesmas ideias baralhadas.
Mas desta vez os jornais, pelo menos o Libération, não vão cair na tentação de romantizar a coisa."