A recente polémica em torno da reorganização hospitalar é apenas mais um exemplo na longa tradição das reformas “a régua e esquadro”, concebidas em obscuros gabinetes da capital, e que, por força de decreto lei ou portaria, vêm impor como cidadãos, empresas ou qualquer organização que se pretenda instalar neste cantinho, deverá funcionar.
Não será antidemocrático o nível de centralismo a que o País chegou? Ter um punhado de burocratas que a partir de Lisboa decidem quais as escolas que funcionam e as que encerram, como se (re)organizam tribunais, centros de saúde e hospitais, etc., deve fazer-nos pensar: este modelo de administração será mais consentâneo com os valores democráticos ou com a visão própria dos regimes colonialistas?
É disto que se trata, as “províncias” de Portugal Continental são as novas colónias. Daí a pergunta: foi para isto que fizemos o 25 de Abril?
Não se trata de negar a necessidade de um governo central, mas, o que se verificou em Portugal (especialmente desde o 25 de Abril) foi a crescente desertificação do País, que culminou no atual quadro de sucessivo encerramento dos serviços existentes em grande parte do País, enquanto, em Lisboa, continuam a nascer novos organismos.
Como passamos de 200.000 funcionários públicos nos anos 70, para cerca de 700.000 no final dos anos 90?! Quem perde e quem beneficia com esta situação? Será, tal como estipula a sacrossanta Constituição, que os cidadãos deste País estão a ser tratados com Igualdade e Equidade, no que toca à distribuição dos recursos públicos?...
Esta mentalidade centralista está tão entranhada que, se há algo que une ps e psd, é a defesa deste regime que assenta na profusão de organismos (ministérios, secretarias de estado, direções gerais, secretarias gerais, institutos e empresas públicas, comissões, gabinetes de estudos, etc., todos instalados na capital), legitimados por decreto e onde milhares e milhares de burocratas se acotovelam, convictos, que é graças ao seu papel que escolas, centros de saúde, tribunais e outros serviços públicos espalhados pelo país funcionam…
Pessoalmente, até discordo daquela crítica habitual: “O Ministro decidiu sem ouvir ninguém”. Suspeito que o nível de concentração de poder atingiu tal ponto que, muito provavelmente, qualquer Ministro ou Secretário de Estado, até ouvem dezenas de organismos (os tais anteriormente referidos), mas, se todas essas entidades se encontram em Lisboa, e é apenas essa realidade que conhecem, como podem ponderar o ponto de vista de quem “está no terreno”?...
O melhor retrato da arquitetura da nossa Administração Pública, está nas próprias Leis que debita. Note que a transcrição que se segue não é inventada ou fruto de um sketch dos Gato Fedorento, é real e pode consultar aqui. Diz assim...
“Lei n.º 23/2013 de 5 de março
Aprova o regime jurídico do processo de inventário, altera o Código Civil, o Código do Registo Predial, o Código do Registo Civil e o Código de Processo Civil. A Assembleia da República decreta, nos termos da alínea c) do artigo 161.º da Constituição, o seguinte:
Artigo 1.º
Objeto
A presente lei aprova o regime jurídico do processo de inventário, altera o Código Civil, aprovado pelo Decreto--Lei n.º 47 344, de 25 de novembro de 1966, e alterado pelos Decretos -Leis n.os 67/75, de 19 de fevereiro, 201/75, de 15 de abril, 261/75, de 27 de maio, 561/76, de 17 de julho, 605/76, de 24 de julho, 293/77, de 20 de julho, 496/77, de 25 de novembro, 200 -C/80, de 24 de junho, 236/80, de 18 de julho, 328/81, de 4 de dezembro, 262/83, de 16 de junho, 225/84, de 6 de julho, e 190/85, de 24 de junho, pela Lei n.º 46/85, de 20 de setembro, pelos Decretos-Leis n.os 381 -B/85, de 28 de setembro, e 379/86, de 11 de novembro, pela Lei n.º 24/89, de 1 de agosto, pelos Decretos-Leis n.os 321 -B/90, de 15 de outubro, 257/91, de 18 de julho, 423/91, de 30 de outubro, 185/93, de 22 de maio, 227/94, de 8 de setembro, 267/94, de 25 de outubro, e 163/95, de 13 de julho, pela Lei n.º 84/95, de 31 de agosto, pelos Decretos -Leis n.os 329 -A/95, de 12 de dezembro, 14/96, de 6 de março, 68/96, de 31 de maio, 35/97, de 31 de janeiro, e 120/98, de 8 de maio, pelas Leis n.os 21/98, de 12 de maio, e 47/98, de 10 de agosto, pelo Decreto –Lei n.º 343/98, de 6 de novembro, pelas Leis n.os 59/99, de 30 de junho, e 16/2001, de 22 de junho, pelos Decretos-Leis n.os 272/2001, de 13 de outubro, 273/2001, de 13 de outubro, 323/2001, de 17 de dezembro, e 38/2003, de 8 de março, pela …"(continuar a ler)
A célebre Reforma do Estado não avança por uma razão muito simples: embora a redução de despesa pública e de carga fiscal passíveis de ser obtidas por via da redução / corte de boa parte dos organismos públicos, permitisse à generalidade dos cidadãos condições para o aumento do seu poder de compra e melhoria do seu nível de vida, tal reforma acarretaria um empobrecimento da capital…
Para finalizar, como recorrentemente se demonstra aqui no blog, a circunstância de toda a comunicação social estar sedeada na capital, tem um enorme impacto na forma como se discute uma série de temáticas - só existe a visão de "lesboa". Este efeito, aliado ao centralismo administrativo, contribui decisivamente para materializar a célebre frase “Portugal é Lisboa e o resto é paisagem.”